sábado, 30 de setembro de 2023

Costura

É que você nunca foi boa com linhas, Alice. Por mais que soubesse das plantas, sufocou a raiz com as mãos. 
Deixou o fio se perder, deixou rasgar o que podia ter unido destinos. Você se espetou com a agulha que fere sua própria história, tornou-se fada sem chão para repousar os pés.

Você foi espera quando ele preferiu atraso. Foi ressaca sem nem mesmo ter costume de beber. Você foi palavras onde só se queria silêncio, foi sonho demais quando não se queria mais nada. Você ofereceu suas asas, mas está na hora de aceitar que ele já não quer mais voar.

Siga. Não peça a atenção que quem gosta deveria dar sem cobrança. Um dia, quando quem sabe ele quiser, vai olhar pro lado e ver que quem voou pra longe foi voce. 

Deixe a luz te invadir de novo. 
Costure a si mesma ao invés de lamentar a ausência de quem não prioriza a linha do seu afeto.


terça-feira, 23 de maio de 2023

Lara #02

 


Mas então o mar me chamou. Ou será que lá sempre estive e apenas não notei? 
Aqui, no profundo, o mundo silencia e posso escutar o destino dos homens. Nas mãos, as conchas do tempo que perdi e que ainda terei. Eu sou a neta da Deusa, a mais nova do cardume, mas ainda assim escolhida por um espírito que tanto vagou. Porém, mesmo que corpo novo, na essência trago a mesma menina que olhava o horizonte ao seu lado.

Sim, mudamos. Seja para o mar, para o céu ou para o fogo. Podem chamar de fora do normal, mas quem determinou que precisava ser igual?

Eu mergulhei. E descobri que é assim que respiro: de fora para dentro.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Luana. #01

 



Mas há daquele lado quem me julgue sem nem conhecer,
Há do outro quem apenas fala e jamais escuta outro som,
Logo em frente apagam as luzes, todos correm, muda o tom,
e bem aqui, eu permaneço, caneta na mão, vida pra ver. 

Se você diz saber pra onde ir, por que parece perdido?
Se diz saber o lugar a que pertence, por que parece não ser?
Se não encontra respostas na essência de ter o que dizer
Me diga então, quando a luz apagar, qual terá sido o sentido?







sábado, 22 de abril de 2023

#01 - Lara.


Torço para que o som que escuto seja de vida. O canto que ouço parece me chamar, mas não sei se me afoga ou salva. Tem muita coisa acontecendo dentro de mim e eu acho que era tão mais fácil ser criança. Guardo minhas conchinhas nas mãos como quem guarda algo pra se manter conectada com quem acho que sou.
 

Parece que tem muito que eu não conheço e ao mesmo tempo eu nunca soube tanto sobre os outros e tão pouco sobre mim. Sempre li muito na escola, mas nada que me preparasse para quando eu sentisse todas essas coisas. 

Sinto falta de não ter tantas perguntas borbulhando em mim.

E toda a noite tenho o mesmo sonho, as mesmas águas, os mesmos olhos. O amor não é mais o mesmo. Nem a amizade, nem o medo. Minhas conchinhas se partem. O lugar que moro não parece mais ser igual e todos acham que ainda não tenho idade para entender, então por que sinto que faço parte do que não conheço?

Não me sinto como as outras garotas da minha idade. Falta algo que eu não sei dizer e eu sinto tudo ao meu redor, o que eles temem, o que amam, o que desejam. Se todos não são como eu, afinal, o que há de tão errado em mim? Procuro as conchas que respondam. 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Recado.

        Deixe a paz retornar ao condado, depois que passarem os ventos tortuosos da Guarma furiosa. Deixe que de novo Rhodes seja apenas lugar de pó e Valentine esconda na lama os segredos que ninguém mais deseja lembrar. Deixe que New Austin seja o único medo, quando bem ali, no meio de todos, circulam aqueles que matam bem mais do que o corpo. Deixe que a gente se esconda debaixo da chuva, no meio dos saloons, das fazendas, das famílias... nós resistimos ao fogo do tempo e continuaremos existindo ainda que tentem de novo nos queimar.
       Nós ardemos, nós voamos, nós renascemos. Nós EXISTIMOS e RESISTIMOS. Debaixo dos olhos do Condado que se acha comum, dos homens gananciosos que só pensam em encher o bolso, unimos as trevas e a luz. Chamamos a força ancestral. Corremos nas flechas de fogo das tribos cujos dentes de lobos rangem, sopramos nas asas dos corvos e espiamos a todos por meio dos olhos dos seres da noite. O Colorado se equilibra nas patas de uma pantera feroz. 

     Deixe a paz retornar e te iludir, mas saiba: esse lugar poderá ser tudo, menos normal. Você não tem a opção de aceitar ou não a nossa existência, apenas de lutar pela sua sobrevivência. Guie seu cavalo devagar pela terra cuja história é sobrenatural, pois nós galopamos em animais que não são do mesmo mundo. Siga sem olhar pro lado, pois, se olhar, jamais será o mesmo de novo.

 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Emma e o mar.


Seria o som? Ou as lembranças? A imagem do pai em um barco pequeno cada vez mais longe, as ondas nos pés... Emma não sabia explicar, apenas sentir. Era ali que se sentia abraçada pelo céu. Era na água que todo o peso de seu corpo parecia flutuar... ela voltava a ser a menina que brincava na Ilha de Guarma e que procurava conchas para construir castelos como aquele que seus olhos tanto amavam na região. Sempre que o mundo a fazia desabar ou que a tristeza invadia, Emma corria para o mar, como seu bisavô ensinou. O homem dizia que a mãe dele, Alice, dizia conversar com as plantas e conhecer segredos das águas. Seria ela louca? Emma não sabia, embora amasse ler as páginas que Alice deixara e se identificasse com sua forma de ver a vida. 

Emma desejava o lado de dentro, ela tinha sede pelo mergulho que tirasse seu ar ao ponto de deixá-la apenas respirar sonhos. Trocar de cidade foi um grande desafio, mas pelo menos ainda havia o mar. Spelland era repleta de segredos e respostas e ela era um abismo de perguntas... um caderno em branco, muitas palavras, o sol e a água. Estavam ali os elementos dos quais ela precisava para começar a viver. O medo da solidão ainda a perseguia, afinal, ninguém merece o abandono desde a infância e Emma sabia bem como era o gosto de precisar se virar sozinha. 

A mãe? Que mãe? Diz o pai que ela era um assunto complicado demais para ser explicado e evitava a todo o custo falar do assunto. Já o pai era um engenheiro naval que gostava da vida tranquila de Guarma e pescava nos finais de semana, levando Emma sempre no barco, ainda que a menina odiasse e insistisse em soltar os peixes assim que o pai os capturava. Mergulhavam juntos sempre que o trabalho deixava. Até que as ondas, como por uma vingança, não mais o trouxeram ao porto. Ele sumiu em dia de chuva, quando foi levar uma carga até Saint Denis e não retornou. Emma tinha 14 anos. Todos os dias esperava um retorno e, por isso, o salgado do mar também lembrava o gosto de lágrimas. A solidão era rotina.

Estudou, se virou, sobreviveu. Escreveu longas cartas que nunca foram entregues. Chorou com conchas que nunca ergueram muros.

E hoje, diante do mar, sente-se mais parte dele do que do mundo. 

Deixa a onda bater, Emma. É só o começo.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Por falar em saudade.


Naquele dia, Alice decidiu calar a música. Ela tinha pensado por muitas noites no quanto sua vida poderia mudar se apenas decidisse seguir o som que parecia tocar numa direção. Porém, quando estava prestes a voar rumo aos braços que a libertariam, percebeu que estava sozinha. Mas de que adiantaria lamentar?


A história inteira de sua vida tinha sido uma despedida, desde o seu nascimento, que foi a partida de sua mãe. Depois seu tio, sua família, seus amigos. Talvez o que dizem a seu respeito seja mesmo verdade e seja ela a maldição que puxa os outros para longe. Então, o que é mais um adeus? Esses que aqui estão, amanhã já não mais estarão. Assim como a natureza, as ervas, a terra… nasce, cresce e parte. 


Por falar em saudade, onde anda você? Ela viu o suficiente para saber onde andavam os olhos que já não mais via. Ela sentiu. 


A menina dos telhados finalmente compreendeu porque sempre gostou de ver tudo de cima: para se despedir do mundo aos poucos. 


A magia podia nascer dela, a luz podia trazer a bondade, mas a sua essência estava cada vez mais triste. Seria a hora de ir embora?

Ou será que apenas um recomeço?


Alice, é hora de se despedir da inocência. 

Por falar em saudade, você a sentiu sozinha.  

Costura

É que você nunca foi boa com linhas, Alice. Por mais que soubesse das plantas, sufocou a raiz com as mãos.  Deixou o fio se perder, deixou r...