sexta-feira, 17 de março de 2023

Recado.

        Deixe a paz retornar ao condado, depois que passarem os ventos tortuosos da Guarma furiosa. Deixe que de novo Rhodes seja apenas lugar de pó e Valentine esconda na lama os segredos que ninguém mais deseja lembrar. Deixe que New Austin seja o único medo, quando bem ali, no meio de todos, circulam aqueles que matam bem mais do que o corpo. Deixe que a gente se esconda debaixo da chuva, no meio dos saloons, das fazendas, das famílias... nós resistimos ao fogo do tempo e continuaremos existindo ainda que tentem de novo nos queimar.
       Nós ardemos, nós voamos, nós renascemos. Nós EXISTIMOS e RESISTIMOS. Debaixo dos olhos do Condado que se acha comum, dos homens gananciosos que só pensam em encher o bolso, unimos as trevas e a luz. Chamamos a força ancestral. Corremos nas flechas de fogo das tribos cujos dentes de lobos rangem, sopramos nas asas dos corvos e espiamos a todos por meio dos olhos dos seres da noite. O Colorado se equilibra nas patas de uma pantera feroz. 

     Deixe a paz retornar e te iludir, mas saiba: esse lugar poderá ser tudo, menos normal. Você não tem a opção de aceitar ou não a nossa existência, apenas de lutar pela sua sobrevivência. Guie seu cavalo devagar pela terra cuja história é sobrenatural, pois nós galopamos em animais que não são do mesmo mundo. Siga sem olhar pro lado, pois, se olhar, jamais será o mesmo de novo.

 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Emma e o mar.


Seria o som? Ou as lembranças? A imagem do pai em um barco pequeno cada vez mais longe, as ondas nos pés... Emma não sabia explicar, apenas sentir. Era ali que se sentia abraçada pelo céu. Era na água que todo o peso de seu corpo parecia flutuar... ela voltava a ser a menina que brincava na Ilha de Guarma e que procurava conchas para construir castelos como aquele que seus olhos tanto amavam na região. Sempre que o mundo a fazia desabar ou que a tristeza invadia, Emma corria para o mar, como seu bisavô ensinou. O homem dizia que a mãe dele, Alice, dizia conversar com as plantas e conhecer segredos das águas. Seria ela louca? Emma não sabia, embora amasse ler as páginas que Alice deixara e se identificasse com sua forma de ver a vida. 

Emma desejava o lado de dentro, ela tinha sede pelo mergulho que tirasse seu ar ao ponto de deixá-la apenas respirar sonhos. Trocar de cidade foi um grande desafio, mas pelo menos ainda havia o mar. Spelland era repleta de segredos e respostas e ela era um abismo de perguntas... um caderno em branco, muitas palavras, o sol e a água. Estavam ali os elementos dos quais ela precisava para começar a viver. O medo da solidão ainda a perseguia, afinal, ninguém merece o abandono desde a infância e Emma sabia bem como era o gosto de precisar se virar sozinha. 

A mãe? Que mãe? Diz o pai que ela era um assunto complicado demais para ser explicado e evitava a todo o custo falar do assunto. Já o pai era um engenheiro naval que gostava da vida tranquila de Guarma e pescava nos finais de semana, levando Emma sempre no barco, ainda que a menina odiasse e insistisse em soltar os peixes assim que o pai os capturava. Mergulhavam juntos sempre que o trabalho deixava. Até que as ondas, como por uma vingança, não mais o trouxeram ao porto. Ele sumiu em dia de chuva, quando foi levar uma carga até Saint Denis e não retornou. Emma tinha 14 anos. Todos os dias esperava um retorno e, por isso, o salgado do mar também lembrava o gosto de lágrimas. A solidão era rotina.

Estudou, se virou, sobreviveu. Escreveu longas cartas que nunca foram entregues. Chorou com conchas que nunca ergueram muros.

E hoje, diante do mar, sente-se mais parte dele do que do mundo. 

Deixa a onda bater, Emma. É só o começo.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Por falar em saudade.


Naquele dia, Alice decidiu calar a música. Ela tinha pensado por muitas noites no quanto sua vida poderia mudar se apenas decidisse seguir o som que parecia tocar numa direção. Porém, quando estava prestes a voar rumo aos braços que a libertariam, percebeu que estava sozinha. Mas de que adiantaria lamentar?


A história inteira de sua vida tinha sido uma despedida, desde o seu nascimento, que foi a partida de sua mãe. Depois seu tio, sua família, seus amigos. Talvez o que dizem a seu respeito seja mesmo verdade e seja ela a maldição que puxa os outros para longe. Então, o que é mais um adeus? Esses que aqui estão, amanhã já não mais estarão. Assim como a natureza, as ervas, a terra… nasce, cresce e parte. 


Por falar em saudade, onde anda você? Ela viu o suficiente para saber onde andavam os olhos que já não mais via. Ela sentiu. 


A menina dos telhados finalmente compreendeu porque sempre gostou de ver tudo de cima: para se despedir do mundo aos poucos. 


A magia podia nascer dela, a luz podia trazer a bondade, mas a sua essência estava cada vez mais triste. Seria a hora de ir embora?

Ou será que apenas um recomeço?


Alice, é hora de se despedir da inocência. 

Por falar em saudade, você a sentiu sozinha.  

terça-feira, 7 de março de 2023

Vazio.

 Suas palavras podem ser cheias de beleza, mas em mim apenas cortaram feridas que na verdade doíam em você. 

sábado, 4 de março de 2023

canção.

 


Agora eu sei que era música. E eu corri na direção dela porque, lá no fundo, a ouvia saindo do desconhecido. Corri como partitura que deseja ser lida, como quem reconhece as notas. Mas, diante do silêncio, percebi que talvez eu ouvisse sozinha e voltei a me calar.

sexta-feira, 3 de março de 2023

Bovary

 

Emma, às vezes, metia-lhe para dentro do colete a orla vermelha das camisolas, compunha-lhe a gravata, ou punha de parte as luvas desbotadas que ele se dispunha ainda a usar; e não era, como pensava charles, por causa dele; era por ela própria, por expansão do seu egoísmo, por irritação nervosa. Às vezes também lhe falava de alguma coisa que tivesse lido, como do trecho de um romance, de uma peça nova, ou de histórias curiosas da alta-roda que vinham no folhetim porque, afinal, charles sempre era alguém, sempre com disposição para ouvir e pronto para dar a sua aprovação. Muitas confidências fazia ela à cadelinha galga! e tê-las-ia feito até às achas do fogão e ao pêndulo do relógio. No íntimo da sua alma, contudo, esperava um acontecimento. como os marinheiros aflitos, percorria com os olhos desesperados a solidão da sua vida, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. Não sabia ela qual seria esse acaso, o vento que lho traria para perto, nem para que praia se sentiria levada, se seria chalupa ou navio de três pontes, carregado de angústias ou cheio de felicidades até às escotilhas mas todas as manhãs, ao acordar, esperava que viesse naquele dia e escutava todos os ruídos, levantava-se em sobressalto, surpreendia-se de que não tivesse vindo; depois, quando o sol se punha, cada vez mais triste, desejava estar já no dia seguinte. Voltou a primavera. Emma sentia falta de ar com os primeiros calores, quando as pereiras floriam a partir do princípio de julho contou pelos dedos quantas semanas lhe faltavam para chegar ao mês de outubro, pensando que o marquês de andervilliers talvez desse ainda outro baile em Vaubyessard. mas setembro passou completamente sem cartas nem visitas. Após o aborrecimento daquela decepção, o coração ficou-lhe novamente vazio e começou outra vez a série dos dias todos iguais. Iam então agora seguir-se assim em fila, idênticos uns aos outros, inumeráveis, nada trazendo de novo! As outras existências, por muito monótonas que fossem, contavam, pelo menos, com a possibilidade de qualquer acontecimento. Imprevisto. uma aventura trazia às vezes consigo peripécias sem fim e o cenário transformava-se. mas, para ela, nada acontecia. deus assim o quisera! o futuro era um corredor todo escuro que tinha ao fundo uma porta bem fechada.


                                                                                Flaubert.


Lavanda.


Lá, do outro lado dessa ponte chamada dor, você me olha.
Lá, do outro lado do medo, você me chama.
Porém, bastaria somente ver o começo da chama?
Se quando eu chego com fogo, teu silêncio molha.

Meus pensamentos caminham pros seus, devagar
Voam de mim perguntando se estão sozinhos
Procuram estradas que cruzem seus caminhos
Mas você se aproxima... e volta a afastar

Quem quebrou as asas do seu abraço?
Quem machucou tanto o seu olhar?
Entre nós a dor une como um laço
Espelho de quem um dia quis acreditar

Devo ficar? Parar? Insistir?
Devo chegar? Esperar? Partir?
Quem sabe deixar-me fugir?
Quem sabe apenas desistir...

Dê um sinal, moço do mar
Pois suas ondas me lembram paz
e molho os pés assim, devagar
encontre-me e faça de mim um cais.


quinta-feira, 2 de março de 2023


Pode dizer que ligou sem ter por quê. Me diz que não pensa, que não sente. Pega toda a tempestade que insiste em explodir de ti e cala, troque os nomes, chame de besteira. E quando teu braço estiver envolto na minha cintura, desaba esta tua chuva inteira. Porque você sabe que eu sou o asfalto que melhor sabe correr esta chuva que é você. Vai, me diz que não quer mais me ver, diz que não sentiu minha falta. Porque a tua boca rindo assim, junto da minha, contradiz todas as tuas palavras e as tuas mãos escrevem poemas em mim. Morra de ciúmes dos meus amigos, mas não me diga nada. Me envie flores sem nunca tê-las mandado. Me leve para jantar sem nem saber onde eu moro. Faça tudo isso sem fazer nada. Porque tudo o que eu precisava saber está no teu abraço apertado, na tua fome de mim. Está neste teu riso acanhado que me tira o ar, neste teu jeito de se achar dono de mim sem me ter. Decore meu guarda-roupa fingindo que não repara, pense em mim fingindo que esqueceu. Ah, nem adianta me olhar deste jeito agora, eu derreto mas não cedo. Você está aqui por que quis, veio por que quis. Eu não te amarrei para que voltasse, como você pediu. E não me faça discursos, sossega. Não me venha com esta história de amor, não agora. Estou ocupada distraindo meu romantismo barato com os cachos do teu cabelo. Eu não me lembro de ter te pedido nada, por que todas estas perguntas? Dê desse seu cheiro para a flor de mim, pois você sabe que me perfuma como ninguém. Pinte os corações que nunca desenhamos nos meus olhos enquanto me diz que acabou, que eu devo te esquecer. Me dá mais dessa contradição que é você que eu te dou do sossego de mim. Lá no fundo tem um pouco de mim em cada texto teu, em cada verso, nos móveis, nas ruas. E a falta de toda a coisa que te causo te faz voltar. Me diz que não quer mais, me manda ir embora da sua vida, mas fica aqui hoje. Fica porque a gente sabe o bem que este nosso mal causa e o quanto cedemos um ao outro enquanto o "não " brinca em nossos lábios. Fica hoje por hoje. E amanhã por amanhã. E no dia em que cansar de contradizer a si mesmo, fica por mim.

Costura

É que você nunca foi boa com linhas, Alice. Por mais que soubesse das plantas, sufocou a raiz com as mãos.  Deixou o fio se perder, deixou r...